Se não existissem regras, não existissem normas, não existissem modelos e estereótipos, o autismo podia, talvez, nem existir. Assente numa forma diferente de ver o mundo, o autismo, enquanto diagnóstico, pode aparecer de forma gradual e quase silenciosa ou ser desde cedo alvo de uma atenção e preocupação gritantes! Serão estas crianças diferentes? Que crianças não o são? Aprendem de uma outra forma? E não terá cada criança o seu ritmo? Serão adultos dependentes e eternamente vulneráveis? Não, se dispuserem de ferramentas para libertar o que está a mais e “alimentar-se” do que faz falta! Impõe-se, para isso, o reconhecimento dos principais sinais de alerta com o objetivo de despertar consciências para a urgência de um diagnóstico precoce, indissociável ao sucesso da intervenção. Serão estas crianças para sempre diferentes? Certamente aprenderão algumas coisas de uma forma mais superficial e vagarosa mas farão muitas aprendizagens tão ou mais importantes e que no seu mundo farão todo o sentido. Terão para sempre um mundo vibrante de cores e sensibilidades a que só eles têm acesso. E não será essa a liberdade que tantos anseiam e não conseguem ter?! Um espaço, um mundo que é só seu? Autismo, um caminho, um olhar diferente…
As perturbações do espetro do autismo são perturbações do desenvolvimento de origem neurobiológica, cuja causa específica ainda é desconhecida. Falar de desenvolvimento implica sempre falar de um processo de mudança, dinâmico e multidimensional, que ocorre durante um período de tempo. De acordo com o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-V), o autismo define-se a partir da observação de “défices persistentes na comunicação social e na interação social em múltiplos contextos, atualmente ou por história prévia”. Na grande maioria dos casos, as características clínicas do autismo tendem a manifestar-se durante os primeiros 3 anos de vida. As dificuldades são habitualmente percebidas a partir do momento em que a criança começa a não conseguir corresponder ao que dela é esperado, verificando-se um prejuízo grave no desenvolvimento da criança.
No contexto das dificuldades manifestas ao nível da comunicação é frequente observar-se, desde cedo, algum comprometimento na interação do bebé sendo que a balbucia aparece limitada em amplitude e complexidade não se verificando a presença de um estilo de comunicação pré-verbal entre a criança e os seus cuidadores. Por volta dos 2 anos de idade, as aquisições ao nível do vocabulário permanecem muito limitadas e com tendência para o mutismo. A criança tende a desenvolver por isso, um estilo de comunicação curta, estereotipada, ecolálica (muito repetitiva) e não funcional. Verificam-se também comprometimentos ao nível da compreensão da linguagem, marcada pela dificuldade na interpretação de conceitos e expressões. É frequente assistir-se a alterações ao nível do discurso como o tom e modulação de voz a que a criança recorre habitualmente, neologismos (que consiste na criação de uma palavra ou expressão nova, ou na atribuição de um novo sentido a uma palavra já existente) e inversão de pronomes (por exemplo, diz “tu” em vez de “eu”). As dificuldades na linguagem comprometem a memória auditiva pelo que as imagens visuais persistem e mais facilmente perduram na memória.
As crianças com autismo não conseguem, por exemplo, alterar padrões de comportamento de acordo com determinada situação social sendo sempre iguais a si próprias. Neste sentido, os sintomas observados ao nível da interação social prendem-se com a falha ou evitamento do contacto visual (em alguns casos), a dificuldade no estabelecimento de relacionamentos afetivos e de reciprocidade, a complexidade na interpretação e expressão emocional que limita comportamentos como a partilha de experiências e a incapacidade de desenvolver ações apoiadas na perceção do outro. É como se não conseguissem ver o mundo sobre nenhuma outra perspetiva que não a sua (cegueira mental). Estas crianças não desenvolvem a capacidade de imaginação sendo difícil entrar em brincadeiras como o “faz-de-conta”. Atuam com base na memória, que têm dos acontecimentos. Na ausência de imaginação, a memória substitui-a. Por isso é natural que o autista manifeste um padrão repetitivo de comportamento.
No contexto comportamental, a perturbação autística é caracterizada pela presença de comportamentos estereotipados e maneirismos motores (flapping e flicking correspondentes à agitação das mãos e dos dedos, respetivamente) mais frequentes nas crianças com um nível de comprometimento cognitivo superior e cuja insistência parece assumir uma qualidade compulsiva. É comum verificar-se a vinculação a determinados objetos (de acordo com determinadas regras que estipulam com base na cor, forma, tamanho e outros aspetos que se revelam indispensáveis para estas crianças) ou um interesse persistente por determinados temas ou coleções (por exemplo, dinossauros, automóveis, datas, poemas ou nomes). A criança autista tem dificuldade em entender o significado geral das coisas, assumindo uma tendência para se focarem em detalhes e pormenores (com particular destaque para as experiências sensoriais). É frequentemente impossível afastar estas crianças dos momentos de brincadeira ou até das suas preocupações. Em tudo seguem os seus impulsos e interesses à parte das conveniências do mundo exterior e os seus estados de humor são radicalmente instáveis. Uma das características comuns nas crianças com perturbação do espetro do autismo é a necessidade de adoção de determinadas rotinas que aumentam a sensação de conforto associada à previsibilidade dos acontecimentos. A docilidade destas crianças pode ser interrompida por uma conduta agressiva quando se impõem obstáculos à sua atividade. Neste sentido, facilmente se entende que se mostrem muito resistentes a mudanças ou alteração de rotinas. Vivem no aqui e agora, o futuro faz parte de um imaginário que não cultivam.
Os primeiros problemas da interação com uma criança com autismo refletem-se, particularmente, na família enquanto unidade baseada na entrega emocional dos seus membros. “ É como se ele estivesse sozinho no seu mundo.” A criança parece despreocupada e desinteressada por tudo, abstraída de qualquer tipo de movimento ou barulho à sua volta e totalmente inacessível a qualquer tentativa de contacto ou comunicação, irritando-se bastante quando isso acontece. Para os pais é extremamente difícil aceitar o comportamento da criança com autismo que interfere na dinâmica da família que não sabe agir e pode mesmo experienciar sentimentos de incompreensão e até rejeição. Contudo, todas as crianças diferem umas das outras e estas não são exceção. São diferentes mesmo dentro do mesmo espectro. Neste sentido, facilmente se entende que a intervenção com estas crianças deva ser individualizada. Em primeiro ligar, deverão ser usadas medidas psicoeducacionais, no sentido de melhorar o conhecimento das famílias acerca das bases neuropsicológicas do autismo e suas implicações. Nenhuma criança com autismo poderá ter só um tipo de tratamento. Estas crianças precisam de ser entendidas como um todo e beneficiar de uma abordagem ampla e completa. O ambiente favorável ao desenvolvimento de competências de funcionalidade nestas crianças é sem dúvida o ponto de partida para qualquer intervenção partindo de objetivos muito concretas e muito frequentemente visuais. As crianças autistas têm, em geral, um atraso em diversos domínios do desenvolvimento, quando comparadas com crianças não autistas. No entanto, apesar de o fazerem a um ritmo diferente, muitas delas conseguem adquirir aprendizagens equivalentes às crianças não autistas. Quando pais e professores estão atentos e são conhecedores desta perturbação, torna-se mais fácil intervir, de forma a potenciar um estilo de vida mais autónomo e funcional. É indispensável que pais, professores e todos os recursos humanos envolvidos no processo de intervenção trabalhem no mesmo sentido, sendo por vezes benéfico, principalmente para os pais, usufruírem de um treino específico para melhor lidarem e comunicarem com os seus filhos. Existe uma infinidade de técnicas que podem ser usadas com estas crianças e que nos ajudam, a cada dia que passa, a desvendar um pouco mais o mistério associado a esta perturbação. Sempre guiados por uma máxima fundamental e que pode, definitivamente, fazer a diferença num mundo de mentalidades nem sempre justas, nem sempre verdadeiras:
“Todo o autista tem potencialidades, para transcender dentro de sua especificidade, por isso, ensine um autista de várias maneiras, pois assim, ele conseguirá aprender.” (Simone Helen Drumond Ischkanian)
Clínica Psiquiátrica Dr. José Carvalhinho
Telm: 914912129
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